quinta-feira, 2 de julho de 2009

This is not the end



"Quando penso nas pequenas paixões dos homens dos nossos dias, na moleza dos costumes, na extensão das suas luzes, na pureza da sua religião, na suavidade da sua moral, nos hábitos de trabalho e no seu sentido de ordem, no comedimento que revelam tanto no vício como na virtude, não é em tiranos que vejo transformarem-se os seus dirigentes, mas antes em tutores.

Penso, portanto, que o género de opressão que ameaça os povos democráticos não se assemelhará a nada do que precedeu neste mundo; os nossos contemporâneos não conseguirão encontrar uma imagem que lhe corresponda nas suas recordações. Eu próprio procuro, em vão, uma expressão que reproduza exactamente a ideia que faço dela e a possa conter; as antigas palavras “despotismo” e “tirania” não servem, O fenómeno é novo; tentarei defini-lo, uma vez que não consigo atribuir-lhe um nome.

Ao procurar imaginar os novos contornos que poderia assumir o despotismo no mundo, vejo uma multidão imensa de homens semelhantes e de igual condição girando sem descanso à volta de si mesmos, em busca de prazeres insignificantes e vulgares com que preenchem as suas almas. Cada um deles, colocando-se à parte, é como um estranho face ao destino dos outros; para ele, a espécie humana resume-se aos seus filhos e amigos; quanto ao resto dos seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-lhes, mas não os sente; ele só existe em e para si próprio e se ainda lhe resta uma família, podemos dizer pelo menos que deixou de ter uma pátria.

Acima desses homens, ergue-se um poder imenso e tutelar que se encarrega sozinho da organização dos seus prazeres e de velar pelo seu destino. É um poder absoluto, pormenorizado, ordenado, previdente e suave. Seria semelhante ao poder paternal se, como este, tivesse por objectivo preparar os homens para a idade viril; mas ele apenas procura, pelo contrário, mantê-los irrevogavelmente na infância. Agrada-lhe que os cidadãos se divirtam, conquanto pensem apenas nisso. Trabalha de boa vontade para lhes assegurar a felicidade, mas com a condição de ser o único obreiro e árbitro dessa felicidade. Garante-lhes a segurança, previne e satisfaz as suas necessidades, facilita-lhes os prazeres, conduz os seus principais assuntos, dirige a sua indústria, regulamenta as suas sucessões, divide as suas heranças. Ser-lhe-á também possível poupar inteiramente aos cidadãos o trabalho de pensar e a dificuldade de viver?

É desta forma que este poder torna cada dia mais raro e menos útil o uso do livre arbítrio, limitando o exercício da livre vontade a um âmbito cada vez mais reduzido e, pouco a pouco, acaba por privar o cidadão de dispor de si próprio. A igualdade preparou os homens para isto tudo, predispondo-os a aceitar este sofrimento e, até, a considerá-lo um benefício.

Depois de se ter tomado desta forma cada um dos indivíduos nas suas poderosas mãos, e de os ter modelado a seu jeito, o soberano estende os seus braços para abarcar a sociedade inteira, e cobre-a com uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através da qual os espíritos mais originais e as almas mais fortes não conseguirão passar para se destacarem da multidão; ele não quebra as vontades, mas amolece-as, verga-as e dirige-as; raramente obriga a agir, mas opõe-se firmemente a que alguém o faça; nada destrói, mas impede que se crie; não tiraniza, mas incomoda, coage, debilita, extingue, embrutece e acaba por reduzir cada nação a um rebanho de animais tímidos e industriosos de que o governo é o pastor.

Sempre pensei que esta espécie de servidão, ordenada, calma, e amena de que acabo de fazer o retrato se poderia conjugar melhor do que se imagina com algumas das formas exteriores da liberdade e que não lhe seria impossível estabelecer-se à sombra da própria soberania do povo.

Os nossos contemporâneos são incessantemente trabalhados por duas paixões inimigas: por um lado, sentem a necessidade de ser conduzidos; por outro, querem permanecer livres. Como não lhes é possível abdicar de nenhum dos dois instintos contrários, esforçam-se por satisfazê-los a ambos. Concebem um poder único, tutelar e todo-poderoso, mas eleito pelos cidadãos. Combinam a centralização com a soberania do povo e isso concede-lhes algum repouso. Consolam-se com o facto de ficarem sob tutela, alimentando a ideia de que foram eles que escolheram os seus tutores. Cada indivíduo consente que o prendam, porque vê que não é um homem nem uma classe, mas o próprio povo, quem segura nas extremidades das suas correntes.

Neste sistema, os cidadãos abandonam por um momento a sua dependência para designarem o seu chefe e, depois, regressam a ela.

Nos nossos dias, há muita gente que se conforma muito facilmente com esta espécie de compromisso entre o despotismo administrativo e a soberania do povo e que crê garantir suficientemente a liberdade dos indivíduos quando é ao poder nacional que a entrega. Para mim, isso não basta. A natureza do senhor tem, a meu ver, menos importância do que a obediência.

Não nego, contudo, que esta forma de poder seja infinitamente preferível a uma outra que, após ter concentrado todos os poderes, os confiasse a um único homem ou a um corpo social irresponsável. Esta seria certamente a pior de todas as formas que poderia assumir o despotismo democrático.

Quando o soberano é eleito ou controlado de perto por uma legislatura realmente electiva e independente, a opressão que ele exerce sobre os cidadãos é por vezes maior, mas sempre menos degradante, porque cada cidadão, quando o molestam ou o reduzem à impotência, pode ainda pensar que, ao obedecer, se submete apenas a si próprio e que é a uma das suas vontades que sacrifica todas as outras.

Compreendo igualmente que quando o soberano representa a nação e dela depende, as forças e os direitos que se retira a cada cidadão não servem apenas o chefe de Estado, mas aproveitam ao próprio Estado, e que os particulares obtêm algum fruto do sacrifício que fizeram da sua independência em favor do conjunto da população.

Criar uma representação nacional num país muito centralizado é diminuir o mal que a extrema centralização pode provocar, mas não destruí-lo.

Compreendo que, desta maneira, se mantém a intervenção individual nos assuntos mais importantes, mas não se deixa de suprimi-la nos pequenos e nos particulares. Esquece-se que é sobretudo nos pormenores que é perigoso escravizar os homens. Quanto a mim, sentir-me-ia inclinado a acreditar que a liberdade é menos necessária nas grandes coisas do que nas pequenas, se pensasse que é possível ter a certeza de umas sem possuir as outras.

A sujeição nos pequenos assuntos manifesta-se todos os dias e todos os cidadãos a sentem indistintamente. Ela não os faz desesperar, mas contraria-os incessantemente e acaba por levá-los a abdicar da utilização da sua própria vontade. Ela apaga-lhes o espírito e debilita-lhes a alma, ao passo que a obediência, que só é exigida em certas circunstâncias muito graves mas muito raras, não revela a servidão senão de tempos a tempos e só faz pesar sobre alguns homens. Em vão se encarrega esses mesmos cidadãos, que tão dependentes se tornaram do poder central, de escolherem, de tempos a tempos, os seus representantes para esse mesmo poder; esta utilização do seu livre arbítrio, que é tão importante mas também tão curta e tão rara, não obstará a que eles percam, gradualmente, a sua faculdade de pensar, de sentir, e de agir por si próprios, nem a que desçam, pouco a pouco, para baixo do nível do que é humano.

Acrescento que eles ficarão rapidamente incapazes de exercer o único e grande privilégio que lhes sobra. Os povos democráticos que introduziram a liberdade na esfera política aumentando ao mesmo tempo o despotismo na esfera administrativa acabaram por ser conduzidos a muitas estranhas singularidades. Quando se trata de resolver pequenos assuntos, para o que talvez bastasse um pouco de bom senso, consideram que os cidadãos são incapazes de o fazer; porém, quando se trata do governo de todo o Estado, já lhes confiam imensas prerrogativas; fazem dos cidadãos, ora os joguetes do soberano, ora os seus senhores, mais do que reis e menos do que homens. Depois de esgotarem todos os diferentes sistemas eleitorais sem terem encontrado um que lhes convenha, espantam-se e continuam a sua busca, como se o mal que observaram não decorresse muito mais da estrutura do seu poder do que da do corpo eleitoral.

Com efeito, é difícil imaginar como é que homens que renunciaram completamente ao hábito de se governarem a si próprios podem ser capazes de escolher devidamente aqueles que devem governá-los e não é possível acreditar que um governo liberal, energético e hábil consiga sair dos sufrágios de um povo de servos.

Uma Constituição republicana no seu espírito e ultra-monárquica em todas as suas outras componentes sempre me pareceu um monstro efémero. Os vícios dos governantes e a imbecilidade dos governados não tardariam a arruiná-la e o povo, cansado dos seus representantes e de si próprio, criaria instituições mais livres, ou voltaria rapidamente a lançar-se aos pés de um único senhor."



Tocqueville insere aqui uma nota de rodapé valiosa:

"Não se pode afirmar de maneira peremptória e geral que o maior perigo da nossa época resida no abuso ou na tirania, na anarquia ou no despotismo. Qualquer deles é igualmente de temer, e podem resultar todos da mesma causa, que é a apatia geral, fruto do individualismo; é essa apatia que permite que, no dia em que consiga reunir alguma força, o poder executivo fique logo em condições de oprimir e que um partido que decida mobilizar trinta homens para um combate no dia seguinte também fique em situação de poder oprimir. Como nenhum deles pode fundar algo de duradoiro, o que os leva a triunfar muito facilmente impede-os de triunfar durante muito tempo. Erguem-se porque nada lhes resiste e caem porque nada os sustenta. Portanto, mais do que o despotismo ou a anarquia, o que importa combater é a apatia, que pode criar, quase indiferentemente, qualquer dos dois primeiros."


Alexis de Tocqueville, "Da Democracia na América" (1840)

quarta-feira, 18 de março de 2009

The Mob Mind


“One commonly hears it said today, by those who have made the catchwords of democracy their crowd cult, that the issue in modern society is between democracy and capitalism. In a sense this may be true, but only in a superficial sense; the real issue is between the personal self as a social entity and the crowd. Capitalism is, to my mind, the logical first fruit of so-called democracy. Capitalism is simply the social supremacy of the trader-man crowd. For a hundred years and more commercial ability – that of organizing industry and selling goods – has been rewarded out of all proportion to any other kind of ability, because, in the first place, it leads to the kind of success which the ordinary man most readily recognizes and envies – large houses, fine clothes, automobiles, exclusive clubs, etc.


Moreover, commercial ability is the sort which the average man most commonly thinks he possesses in some degree. While, therefore, he grumbles at the unjust inequalities in wealth which exist in modern society, and denounces the successful businessman as an exploiter and fears his power, the average man will nevertheless endure all this, much in the same spirit that a student being initiated into a fraternity will take the drubbing, knowing well that his own turn at the fun will come later. It is not until the members of the under crowd begin to suspect that their dreams of “aping the rich” may never come true that they begin to entertain revolutionary ideas. In other words, forced to abandon the hope of joining the present dominating crowd, they begin to dream of supplanting and so dispossessing this crowd by their own crowd.”



Everett Dean Martin, “Behavior of Crowds” (1920)

quarta-feira, 4 de março de 2009

Maximize your scale



"Embora eu não duvide que o isolamento contribui consideravelmente para a produção de novas espécies, no todo, parece-me que a grandeza de área é de maior importância, em particular para a produção de espécies com capacidade de subsistir por longos períodos e de disseminarem extensamente. Uma área extensa e não vedada oferece não somente maiores probabilidades para o aparecimento de variações favoráveis, em consequência do grande número de indivíduos da mesma espécie que são sustentados, mas também condições de vida infinitamente complexas devido ao grande número de espécies já existentes. Se algumas destas muitas espécies se modificam ou aperfeiçoam, outras terão de ser melhoradas num grau correspondente ou serão exterminadas.


Assim que tenha sido consideravelmente melhorada, cada nova forma será também capaz de se propagar nessa contínua área não vedada, entrando em competição com muitas outras formas. Novos lugares adicionais serão assim formados e a competição para os ocupar será mais renhida numa área grande do que numa área pequena e isolada. As grandes áreas, embora sejam actualmente contínuas, ainda em tempos recentes, devem muitas vezes, por oscilações de nível, ter existido num estado fraccionado pelo que os bons efeitos do isolamento, em certa medida, fizeram-se também sentir.


Em resumo, posso concluir que, embora as pequenas áreas isoladas tenham provavelmente sido, em alguns aspectos, altamente favoráveis para a produção de novas espécies, o curso das modificações deve, no entanto, ter sido mais rápido nas grandes áreas. E, o que é ainda mais importante, as novas formas produzidas em áreas grandes, tendo já saído vitoriosas em relação a muitos concorrentes, são as que se vão disseminar mais extensamente e dar origem à maioria das novas variedades e espécies, desempenhando assim um papel importante na história variável do mundo orgânico."


Charles Darwin, "A origem das espécies" (1859)



sábado, 17 de janeiro de 2009

The Golden Path


“Like other tyrannies, the tyranny of the majority was at first, and is still vulgarly, held in dread, chiefly as operating through the acts of the public authorities. But reflecting persons perceived that when society is itself the tyrant – society collectively, over the separate individuals who compose it – its means of tyrannizing are not restricted to the acts which it may do by the hands of its political functionaries. Society can and does execute its own mandates: and if it issues wrong mandates instead of right, or any mandates at all in things with which it ought not to meddle, it practises a social tyranny more formidable than any kinds of political oppression, since, though not usually upheld by such extreme penalties, it leaves fewer means of escape, penetrating much more deeply into the details of life, and enslaving the soul itself.

Protection, therefore, against the tyranny of the magistrate is not enough; there needs protection also against the tyranny of the prevailing opinion and feeling; against the tendency of society to impose, by other means than civil penalties, its own ideas and practices as rules of conduct on those who dissent from them; to fetter the development, and if possible, prevent the formation, of any individuality not in harmony with its ways, and compel all characters to fashion themselves upon the model of its own. There is a limit to the legitimate interference of collective opinion with individual independence; and to find that limit, and maintain it against encroachment is as indispensable to a good condition of human affairs, as protection against political despotism.”



John Stuart Mill, “On Liberty” (1859)