domingo, 28 de dezembro de 2008

Animal Collective - Merriweather Post Pavilion (2009)



Uma das grandes vantagens de se estar (ou pelas menos tentar estar) na vanguarda musical é acompanhar o nascimento de algo que nos mude a percepção do mundo e que se torne tão nosso, que por um lado queremos mostrar porque temos orgulho e por outro queremos guardar porque a hipótese da partilha horroriza-nos. Mais ou menos como a pessoa amada.
O hype é muitas vezes um mérito hiperbolizado e algumas vezes a vulgarização do segredo original, muito por culpa da banda que se rende a sonoridades mais mainstream.
O espírito underground rege-se por dois princípios: a busca incessante por algo diferente e a sua divulgação por circuitos de difícil acesso. Essa dificuldade de informação, dir-se-á, é o creme de la creme porque simboliza o esforço do indivíduo em melhorar, em lutar por aquilo que quer, porque não se acomoda, porque quer ser diferente, porque em última análise não se conforma com o mundo que tem.
Independentemente das prendas que tive no Natal, nada se compara á leak que saiu no mesmo dia: Animal Collective – Merriweather Post Pavilion, álbum com lançamento para meados de Janeiro de 2009, três semanas depois portanto.
Já tinha ouvido alguns álbuns anteriores ( Feels (2005) e Strawbwerry Jam ((2007)) e a percepção musical era a de uma sonoridade essencialmente caótica e aparentemente desordenada, mas com uma linha de rumo que ao mesmo tempo trazia organização ou alguma coerência. Tirando algumas músicas não podia dizer que era fã do grupo.
Mas isso mudou.
Este álbum é um passo em frente no estilo. Já existe uma harmonia explícita no caos e a faixa de abertura “In the Flowers” é uma barbaridade de beleza.
Nada, repito, nada pode ser tomado como referência a esta música. No final de a ter ouvido e antes de a voltar a ouvir só me lembrava de uma frase de “Beleza Americana”: “Ás vezes há tanta beleza no mundo que só me apetece chorar”.
Ao segundo dia depois de ouvir o álbum em contínuo, “In the Flowers” é viciante e os comentários no Last.fm começam a chover: “Hoooooooly fuuuuuuuuuck!!!!”, “at 2:31 it´s like God is pissing rainbows and cinnabons into my ears”, “if I could just leave my body for a night BOOOOOOOOM”, “how could they have made this song better!?!?!? 2:31 WTF! Tears came to my eyes… for real”.
É algo de novo, talvez Fischerspooner com (ainda) melhores melhores letras mas com uma sonoridade psicadélica.
O resto do álbum é globalmente bom, com outras boas músicas ( “Summertime Clothes”, “Bluish” e Lion in a Coma” com uma batida aborígene), mas nenhuma se aproxima a “In the Flowers”.
Pode ser um dos álbuns de 2009 e de futuro será o álbum de “In the Flowers”.
O Natal este ano não foi material. Mudou-me.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

O amor é um pop-up

De repente, como se fosse subitamente atraído por um íman de enorme potência, o meu olhar dirigiu-se com lentidão e quase sem o sentir para o terraço da casa em frente, onde, mansamente reclinada no parapeito, me estava a observar aquela que a partir desse instante (se é que não foi outro e eu não me dei conta, pois com frequência me distraio e podem suceder-me as coisas mais importantes sem as ver a não ser no meio dos sonhos) se converteu na mulher da minha vida, ou seja, na encarnação dos meus sonhos: Felícia, Felícia Hernández, hoje, de Zamora; Felícia, figura inesquecível por quem abandonei tudo, posição, fortuna, ilusões. Pois bem. A mulher dos braços morenos era Felícia, e olhava-me fixamente, com espanto, como se também ela não acreditasse no que estava vendo e tudo lhe parecesse um sonho do qual infelizmente deveria despertar; fixou-me com o olhar próprio dos sonâmbulos durante um grande bocado, até que por fim, movida talvez pela emoção daquela experiência inefável, me dedicou de longe um sorriso muito doce, seguido de uma estrondosa gargalhada que deixou escapar antes de se retirar para os seus aposentos deixando-me demasiado perplexo.
Pouco depois, não sei se possuído por um prazer ou por uma dor muito grande, tão estranho era o estado em que me encontrava, dirigi-me pensativo para o meu quarto. Mas nesse dia não consegui ler mais, pois caí redondo no sono, como cai um corpo morto.

Nem nesse dia nem nos seguintes.
A minha mente era nesses dias como a de uma mosca que umas vezes se encontra inquieta no tecto esfregando as mãos, outras se move ansiosa em frente da janela sem se decidir a sair, outras colada á parede, imóvel, como morta e aparentemente alheia aos males deste mundo, e outras em qualquer parte, onde não é raro, se repararem bem, andarem as moscas, excepto quando estão tristes ou muito enamoradas e sem saber o que fazer, porque nessas circunstâncias não têm o menor ânimo para saírem à rua, nem para ficarem muito tempo na parede, e muito menos para se porem a ler ou ouvir música, pois esta ou aquela frase, tal ou tal canção, seja o que for, lembra-lhe à mosca que ontem não se viram e que hoje não se podem ver, e nesse momento não fica segura se essa mosca gosta dela ou está com outra no cinema ou nalguma festa de amigos comuns, feliz, sem pensar nela, e assim sendo qualquer coisa que leia ou ouça lembra-lhe a sua mosca ausente e quem sabe se para sempre perdida, e por isso não pode estar quieta no tecto, na janela ou na parede, com o pensamento fixo somente na sua mosca, que agora estará a passear de mão dada com outra, enquanto ela, deixada ao abandono total, não consegue permanecer tranquila um segundo nem no chão nem na parede nem na cama nem em qualquer lugar ou circunstância da vida, apesar de haver tantas moscas na vida.

Augusto Monterroso, “O resto é silêncio”

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

First strike at dawn


Cinco da manhã em Lisboa. YES WE CAN!

sábado, 18 de outubro de 2008

First Post



A transmutação da moral da sociedade alemã durante o regime de Hitler que permitiu a barbarie:

"A ideia muito difundida segundo a qual aqui nos confrontamos apenas com um bando de criminosos que, por meio de uma conspiração, estavam dispostos a cometer indiferentemente quaisquer crimes é perigosamente enganadora. […] Igualmente enganadora é a ideia corrente segundo a qual o fenómeno corresponderia a uma explosão de niilismo moderno, pelo menos se entendermos o credo niilista nos termos do séc. XIX: “tudo é permitido”. A facilidade com que se provou que a consciência podia ser calada era em parte uma consequência directa do facto de nem tudo ser permitido.

Porque nunca chegaremos ao fundo moral do problema, chamando ao que aconteceu “genocídio” ou contando os milhões de vítimas: o extermínio de povos inteiros já ocorreu na Antiguidade, bem como durante a história da colonização moderna. Só poderemos tocá-lo quando formos capazes de compreender que tudo se passou no quadro de uma ordem legal e que a pedra angular da “nova lei” consistia no mandamento “Matarás” – matarás não o teu inimigo, mas gente inocente e que não é sequer potencialmente perigosa; matarás não por necessidade, mas, pelo contrário, ignorando todas as considerações militares ou utilitárias que o desaconselham.[…]
Ao mesmo tempo, os actos em que se traduziam não eram obra de foragidos da justiça, monstros ou sádicos exacerbados, mas dos mais respeitados membros da sociedade respeitável. Finalmente devemos compreender que, embora estes assassinos em massa fossem apresentados como decorrendo de uma ideologia racista, anti-semita ou baseada de uma maneira ou de outra em considerações de ordem demográfica, a verdade é que, entre os assassinos e os seus cúmplices directos, os que não acreditavam nessas justificações ideológicas eram mais numerosos que aqueles que acreditavam nelas, porque, tanto para uns como para outros, o fundamental era que aquilo que acontecia correspondesse à “vontade do Fuhrer”, que era a lei do país, a às “palavras do Fuhrer” dotadas de força de lei. […]
Era como se a moral, no próprio momento em que soçobrava totalmente no interior de uma antiga nação altamente civilizada, se revelasse, em conformidade com o sentido original da palavra, como um conjunto de “mores”, de usos e costumes, passível de ser trocado por um outro conjunto, sem que isso pusesse dificuldades maiores que a transformação das maneiras de mesa de um povo inteiro.[…] Mas deixem-me levantar agora duas questões: em primeiro lugar, de que maneira foram diferentes os poucos que, em todos os níveis da sociedade não colaboraram e se recusaram a participar na vida pública, embora não pudessem levar a cabo uma insurreição e não o tivessem feito? […]

A resposta á primeira questão é relativamente simples: os não-participantes, a que a maioria chama irresponsáveis, foram os únicos que ousaram julgar por si próprios, e foram capazes de o fazer, não por disporem de um melhor sistema de valores ou pelo facto de os velhos critérios de distinção entre o bem e o mal continuarem ainda solidamente implantados no seu espírito e na sua consciência. […] O critério que adoptaram foi, penso eu, diferente: perguntaram em que medida poderiam continuar a viver em paz consigo próprios se cometessem certas acções; e decidiram que era melhor nada fazerem, não porque isso mudasse o mundo para melhor, mas simplesmente porque só nessa condição seriam capazes de continuar a viver consigo mesmos. Foi por isso que escolheram também morrer quando os quiseram forçar a participar. Para o dizermos em termos mais crus, recusaram-se a assassinar, não tanto porque fizessem questão de observar o mandamento: “Não matarás”, mas porque não queriam viver com um assassino – a sua própria pessoa.

A pré-condição desta espécie de juízo não é termos uma inteligência muito desenvolvida nem um conhecimento especializado profundo das questões morais, mas antes o hábito de viver cada um de nós consigo mesmo em termos explícitos, de comunicar cada um de nós consigo mesmo, quer dizer, de me entregar a esse diáloguo silencioso de mim comigo mesmo, a que, desde Sócrates e Platão, chamamos pensamento. Trata-se de um tipo de pensamento que não é técnico nem se refere a problemas teóricos, embora esteja na origem de todo o pensamento filosófico. A linha divisória entre os que querem pensar e devem, portanto julgar por si próprios, e os que que o não querem, é transversal em relação a todas as distinções sociais, de nível de instrução ou de cultura.
A este respeito, a completa derrocada moral da sociedade respeitável durante o regime htleriano ensina-nos que, em circunstâncias semelhantes, não é nos que exaltam os valores e sustentam mais fortemente as normas morais que podemos confiar: sabemos hoje que as normas e critérios morais podem mudar de um dia para o outro, e que tudo o que resta é o mero hábito de exaltar e sustentar alguma coisa. Muito mais de fiar serão os que duvidam e os cépticos, não porque o cepticismo seja uma coisa boa, ou a dúvida, saudável, mas porque estão habituados a examinar as coisas e a formar a sua própria opnião. Mas os melhores de todos são os que têm uma única certeza: que aconteça o que acontecer, enquanto vivermos, teremos de viver, tendo-nos por companheiros nós próprios."

Hannah Arendt, “Responsabilidade e Juízo” (1964)