sábado, 18 de outubro de 2008

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A transmutação da moral da sociedade alemã durante o regime de Hitler que permitiu a barbarie:

"A ideia muito difundida segundo a qual aqui nos confrontamos apenas com um bando de criminosos que, por meio de uma conspiração, estavam dispostos a cometer indiferentemente quaisquer crimes é perigosamente enganadora. […] Igualmente enganadora é a ideia corrente segundo a qual o fenómeno corresponderia a uma explosão de niilismo moderno, pelo menos se entendermos o credo niilista nos termos do séc. XIX: “tudo é permitido”. A facilidade com que se provou que a consciência podia ser calada era em parte uma consequência directa do facto de nem tudo ser permitido.

Porque nunca chegaremos ao fundo moral do problema, chamando ao que aconteceu “genocídio” ou contando os milhões de vítimas: o extermínio de povos inteiros já ocorreu na Antiguidade, bem como durante a história da colonização moderna. Só poderemos tocá-lo quando formos capazes de compreender que tudo se passou no quadro de uma ordem legal e que a pedra angular da “nova lei” consistia no mandamento “Matarás” – matarás não o teu inimigo, mas gente inocente e que não é sequer potencialmente perigosa; matarás não por necessidade, mas, pelo contrário, ignorando todas as considerações militares ou utilitárias que o desaconselham.[…]
Ao mesmo tempo, os actos em que se traduziam não eram obra de foragidos da justiça, monstros ou sádicos exacerbados, mas dos mais respeitados membros da sociedade respeitável. Finalmente devemos compreender que, embora estes assassinos em massa fossem apresentados como decorrendo de uma ideologia racista, anti-semita ou baseada de uma maneira ou de outra em considerações de ordem demográfica, a verdade é que, entre os assassinos e os seus cúmplices directos, os que não acreditavam nessas justificações ideológicas eram mais numerosos que aqueles que acreditavam nelas, porque, tanto para uns como para outros, o fundamental era que aquilo que acontecia correspondesse à “vontade do Fuhrer”, que era a lei do país, a às “palavras do Fuhrer” dotadas de força de lei. […]
Era como se a moral, no próprio momento em que soçobrava totalmente no interior de uma antiga nação altamente civilizada, se revelasse, em conformidade com o sentido original da palavra, como um conjunto de “mores”, de usos e costumes, passível de ser trocado por um outro conjunto, sem que isso pusesse dificuldades maiores que a transformação das maneiras de mesa de um povo inteiro.[…] Mas deixem-me levantar agora duas questões: em primeiro lugar, de que maneira foram diferentes os poucos que, em todos os níveis da sociedade não colaboraram e se recusaram a participar na vida pública, embora não pudessem levar a cabo uma insurreição e não o tivessem feito? […]

A resposta á primeira questão é relativamente simples: os não-participantes, a que a maioria chama irresponsáveis, foram os únicos que ousaram julgar por si próprios, e foram capazes de o fazer, não por disporem de um melhor sistema de valores ou pelo facto de os velhos critérios de distinção entre o bem e o mal continuarem ainda solidamente implantados no seu espírito e na sua consciência. […] O critério que adoptaram foi, penso eu, diferente: perguntaram em que medida poderiam continuar a viver em paz consigo próprios se cometessem certas acções; e decidiram que era melhor nada fazerem, não porque isso mudasse o mundo para melhor, mas simplesmente porque só nessa condição seriam capazes de continuar a viver consigo mesmos. Foi por isso que escolheram também morrer quando os quiseram forçar a participar. Para o dizermos em termos mais crus, recusaram-se a assassinar, não tanto porque fizessem questão de observar o mandamento: “Não matarás”, mas porque não queriam viver com um assassino – a sua própria pessoa.

A pré-condição desta espécie de juízo não é termos uma inteligência muito desenvolvida nem um conhecimento especializado profundo das questões morais, mas antes o hábito de viver cada um de nós consigo mesmo em termos explícitos, de comunicar cada um de nós consigo mesmo, quer dizer, de me entregar a esse diáloguo silencioso de mim comigo mesmo, a que, desde Sócrates e Platão, chamamos pensamento. Trata-se de um tipo de pensamento que não é técnico nem se refere a problemas teóricos, embora esteja na origem de todo o pensamento filosófico. A linha divisória entre os que querem pensar e devem, portanto julgar por si próprios, e os que que o não querem, é transversal em relação a todas as distinções sociais, de nível de instrução ou de cultura.
A este respeito, a completa derrocada moral da sociedade respeitável durante o regime htleriano ensina-nos que, em circunstâncias semelhantes, não é nos que exaltam os valores e sustentam mais fortemente as normas morais que podemos confiar: sabemos hoje que as normas e critérios morais podem mudar de um dia para o outro, e que tudo o que resta é o mero hábito de exaltar e sustentar alguma coisa. Muito mais de fiar serão os que duvidam e os cépticos, não porque o cepticismo seja uma coisa boa, ou a dúvida, saudável, mas porque estão habituados a examinar as coisas e a formar a sua própria opnião. Mas os melhores de todos são os que têm uma única certeza: que aconteça o que acontecer, enquanto vivermos, teremos de viver, tendo-nos por companheiros nós próprios."

Hannah Arendt, “Responsabilidade e Juízo” (1964)