sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Do polvo e da tinta



I – O que o polvo pensa

"As sociedades secretas formam também hierarquias de acordo com o grau de “iniciação”, regulam a vida dos seus membros segundo um pressuposto secreto e fictício que faz com que cada coisa pareça ser outra diferente; adoptam uma estratégia de mentiras coerentes para iludir as massas de fora, não iniciadas; exigem obediência irrestrita dos seus membros, que são mantidos coesos pela fidelidade a um líder frequentemente desconhecido e sempre misterioso, rodeado, ou supostamente rodeado por semi-iniciados que constituem uma espécie de “amortecedor” contra o mundo profano e hostil. Os movimentos totalitários têm ainda em comum com as sociedades secretas a divisão dicótoma do mundo entre “irmãos jurados de sangue” e uma massa indistinta e inarticulada de inimigos jurados. Esta distinção, baseada na absoluta hostilidade contra o mundo que os rodeia, é muito diferente da tendência dos partidos comuns de dividir o povo entre os que pertencem ou não à organização. Os partidos e as sociedades abertas, geralmente, só consideram como inimigos aqueles que se lhes opõem expressamente, ao passo que o princípio das sociedades secretas sempre foi que “aquele que não estiver expressamente incluído está excluído”.


II – O que o polvo diz

Nisto, como em tantos outros aspectos, o nazismo e o bolchevismo chegaram ao mesmo resultado organizacional a partir de origens históricas muito diferentes. Os nazis começaram com a ficção de uma conspiração e imitaram, mais ou menos conscientemente, o modelo de sociedade secreta dos Sábios de Sião, ao passo que os bolchevistas vieram de um partido revolucionário, cujo objectivo era a ditadura de um só partido, atravessaram a fase em que o partido ficou “inteiramente acima e separado de tudo” até ao instante em que o Politburo do partido ficou “inteiramente acima e separado de tudo”; finalmente Estaline impôs a essa estrutura partidária as rígidas normas totalitárias do seu sector conspiratório e apenas então descobriu a necessidade de uma ficção central para manter na organização de massa a férrea disciplina de uma sociedade secreta. A evolução nazi pode ser mais lógica, mais coerente consigo mesma, mas a história do partido bolchevique é um exemplo melhor da natureza essencialmente fictícia do totalitarismo, precisamente porque as fictícias conspirações globais contra as quais e de acordo com as quais a conspiração bolchevique supostamente se organizou não foram ideologicamente fixadas. Mudaram – dos trotskistas para as 300 famílias, depois para os vários “imperialismos” e, mais recentemente, para o “cosmopolitismo sem raízes”, o “sionismo” e “neocolonialismo” – e foram ajustadas à realidade política segundo as necessidades do momento; mas nunca e em nenhuma das mais diversas circunstâncias pôde o bolchevismo passar sem algum tipo de ficção"


III – O que o polvo faz


As sociedades secretas em geral e o aparelho conspirativo dos partidos revolucionário em particular sempre foram caracterizados pela ausência de facções, pela supressão de opiniões dissidentes e pela absoluta centralização do comando. Todas estas medidas têm a óbvia finalidade utilitária de proteger os membros contra a perseguição e a sociedade contra a traição; a obediência total exigida de cada membro e o poder absoluto nas mãos do chefe foram apenas subprodutos inevitáveis de necessidades práticas. O problema, porém, é que os conspiradores têm uma tendência, compreensível aliás, de julgar como mais eficazes na política os métodos das sociedades conspirativas e de supor que, se esses métodos puderem ser aplicados abertamente com o apoio dos instrumentos de violência de toda uma nação, as possibilidades de acumulação tornam-se infinitas. (Souvarine menciona que Estaline se impressionava sempre com aqueles que eram bem sucedidos “nos negócios”. Via a política como um negócio que exigia destreza)


IV – Do uso da tinta do polvo

Mas o principal valor da estrutura organizacional e dos padrões morais das organizações secretas ou conspiratórias para fins de organização das massas não está na garantia intrínseca de participação incondicional e lealdade incondicional nem na manifestação organizacional de hostilidade cega contra o mundo exterior, mas na sua incomparável capacidade de estabelecer e proteger o mundo fictício por meio de constantes mentiras. Certa mistura de credulidade e cinismo havia sido importante característica da mentalidade da ralé antes que se tornasse fenómeno diário das massas. Num mundo incompreensível e em perpétua mudança, as massas tinham chegado a um ponto em que, ao mesmo tempo, acreditavam em tudo e em nada, julgavam que tudo era possível e nada era verdadeiro.
A propaganda de massas descobriu que o seu público estava sempre disposto a acreditar no pior, por mais absurdo que fosse, sem objectar contra o facto de estar a ser enganado, uma vez que achava que qualquer afirmação, afinal de contas, não passava de mentira.
Os chefes totalitários basearam a sua propaganda no pressuposto psicológico correcto de que, em tais condições, era possível fazer com que as pessoas acreditassem nas mais fantásticas afirmações em determinado dia, na certeza de que, se recebessem no dia seguinte a prova irrefutável da sua falsidade, apelariam para o cinismo; em lugar de abandonarem o chefe que lhes havia mentido, diriam que sempre souberam que a afirmação era falsa e admirariam-no pela grande esperteza táctica. Esta reacção das audiências de massas tornou-se importante principio hierárquico para as organizações de massas.
Uma mistura de credulidade e cinismo prevalece em todos os escalões dos movimentos totalitários e quanto mais alto o posto mais o cinismo prevalece sobre a credulidade. A convicção essencial compartilhada por todos os escalões, desde os simpatizantes até ao líder, é de que a política é um jogo de mentiras, e que o “primeiro mandamento” do movimento – o “Füehrer tem sempre razão” – é tão necessário aos fins da política mundial – isto é, da fraude mundial – como as regras da disciplina militar o são para as finalidades da guerrra."


O corpo do texto ( e não as suas divisões) de Hannah Arendt, "As origens do totalitarismo" (1951)